Não podia ficar indiferente ao artigo de Luís Osório, publicado
no semanário “Sol”. Nesta análise (lúcida, acutilante, sem piedade) o autor insurge-se contra o facto de os alunos serem massacrados com conceitos teóricos, não sobrando tempo
para o exercício do pensamento, traduzido nas capacidades de expressão escrita e oral…
Tendo lecionado durante 35 anos letivos, sei que a tarefa é árdua para os professores de Português. Afogados numa burocracia
estúpida, perdidos em horas de reuniões (de análise de documentos, de planificações,
disto e daquilo), com turmas a abarrotar, não lhes sobra tempo para pensar e criar
as suas próprias estratégias que permitam que a sala aula seja um verdadeiro espaço
de comunicação.
A disciplina de Português é um crime contra o futuro
por Luís Osório
Estudar Português com os meus filhos é uma viagem ao inferno. Faço por disfarçá-lo. Talvez por achar que as dúvidas acabarão por prejudicá-los ainda mais do que a conta a pagar.
Mas cá para nós. Para os que acreditam que o pensamento deve alargar-se com especulação, sonho, dúvidas. Para os que julgam ser a escrita a melhor ferramenta para se compreender e viajar pela língua que deveríamos defender como soldados de um exército do pensamento. Para os que lêem romances, biografias e ensaios. Para os que escrevem e pensam. Cá para nós, a forma como se ensina Português nas escolas é um crime. Um escândalo. Uma forma, como diz um amigo professor, de criar amputados mentais.
Porque os miúdos não aprendem a ler e escrever. Os miúdos aprendem apenas, e de um modo rápido, a detestar a disciplina e a afastarem-se, para todo o sempre, da leitura e da escrita.
Na disciplina de Português não se viaja pelo pensamento. Atraca-se num lodo de gramática, campo árido para burocratas da língua que são o prolongamento de tudo o resto. Infelizmente, estudar o que deveria ser o centro do que somos, a nossa identidade, faz-me lembrar os dias em que era obrigado a tomar óleo de fígado de bacalhau.
O que queremos? Uma disciplina que nos ensina o que depois esquecemos? Ou uma que estimule o pensamento, que desafie à leitura e à escrita, que desencadeie nos miúdos os mecanismos de intuição que apenas estão ao alcance de quem lê.
Para já tudo mal. As médias em Português são abaixo de medíocres. A maioria dos alunos não sabe interpretar um texto. Não consegue ler um livro e odeia de morte a disciplina – e têm razão para odiar. Então porque não mudar?
O problema está nos professores, oiço. Em alguns estará. É um rolo compressor, um efeito dominó em que, às tantas, os licenciados terminam os cursos a saber de gramática e nada da língua. Como os médicos que sabem de anatomia e depois, porque têm a obrigação de conseguir médias de 19, não têm tempo para o pormenor de conhecer alguma coisa do ser humano.
Em alguns estará. Professores que vêem as suas aulas como um exercício de poder em que, mais importante do que ensinar, mais importante do que alargar horizontes, é o seu próprio poder. Quantas vezes ouvi professores de Português a criticar Saramago por não saber colocar as vírgulas nos lugares certos? Porém, estou em crer que a maioria gostaria que fosse de uma outra maneira. Se pudessem, escolheriam ser o professor do Clube dos Poetas Mortos e não merceeiros de tempos verbais – ainda por cima de tempos verbais pouco ou nada adequados à realidade.
Desculpem-me o desabafo. Uma fuga ao sentido desta crónica semanal. Regra geral, conto histórias de pessoas, pequenos segredos, histórias da História. Hoje, foi um pouco diferente. Penso, ainda assim, em pessoas.
No José Manuel Rodrigues da Silva, primeira referência no jornalismo cultural que ensinou a várias gerações a importância de saber medir o movimento interior, a decisiva importância de conhecer as palavras para melhor utilizar o silêncio.
No António Lobo Antunes que me explicou o quanto o irritavam os que escreviam deixando as ferramentas todas à mostra – quando a escrita, a essência do pensamento era precisamente o da depuração, o exercício da procura do que não existe antes de ser pensado.
Ou de Vergílio Ferreira que a propósito de escrever, escreveu: «Que é escrever? Que é pensar? Quem é o dono do que existiu através de nós? Quem escreve o que escrevemos? Não há outro autor senão o seu autor. Mas há para lá disso o mistério de nós no que foi mistério revelado. Mistério de nós. Mistério da própria língua. Talvez o insinuado modo de ser destino em nós o destino».
Uma conta a pagar, escrevo no primeiro parágrafo. Uma conta colectiva, acrescentaria agora. De homens e mulheres que nascem e vivem cinzentos. Incapazes de ler nas entrelinhas. De imaginar o que não vem nos livros. De criar o que nunca foi criado. De escrever um texto que os faça especiais, que nos ensine alguma coisa, que nos obrigue ao pensamento. Burocratas que ‘marrarão’ nos verbos e nada saberão de uma casa que é de todos. A nossa identidade.
Nunca seria um bom aluno na disciplina de Português. Esqueci-me de tudo o que aprendi, mas quando, aos dez anos, li O Meu Pé de Laranja Lima, algo de indecifrável se abriu à minha frente. Uma urgência de saber, de conhecer, de me surpreender.
E no final de um livro passei a começar outro. Até que um dia, depois de ler O Amante, de Marguerite Duras, sentei-me de frente para as minhas vírgulas, pontos, complementos e predicados. Falou mais alto a urgência de descobrir um caminho, a necessidade de pensar na minha língua, de pensar naquilo que me faz ser único sendo o mesmo que tantos.
O nosso país é a nossa língua. Que é feita de sonho e pedra. Não deixemos as pedras esmagarem o sonho. Se o fizermos formaremos uma elite de pedreiros, mas nunca seremos arquitectos. Ajudaremos a construir os países dos outros, não a sonhar um país feito do que somos. Das nossas entranhas e coração. O destino de Portugal também passará por aqui. Pelo que formos capazes de escrever. De pensar.
Data: 19/02/2013
Fonte: http://sol.sapo.pt/inicio/Opiniao/interior.aspx?content_id=68507&opiniao=Opini%EF%BF%BDo